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A Peste bovina é vencida - Uma luta de milênios

CAMPO DA MORTE carcaças de gado de um pasto cheio na África do Sul em 1900 durante uma epidemia de peste bovina.


A ONU declarou oficialmente o fim da peste bovina. Pela segunda vez na história, erradicaram uma doença da face da terra


O mundo todo já ouviu falar da varíola. Muito poucos conhecem a segunda classificada. Isto acontece porque a peste bovina é uma epizootia, uma doença animal, parente do vírus do sarampo que infesta animais de casco fendido, incluindo gado, búfalos, grandes antílopes e veados, porcos e javalis, mesmo girafas e gnus. As estirpes mais virulentas matam 95 por cento das manadas que atacam.

A peste bovina está longe de ser irrelevante para os seres humanos. Foi culpada por acelerar a queda do Império Romano (1), por ajudar às conquistas de Gengis Khan , por perturbar a expansão de Carlos Magno (2), por abrir o caminho para as revoluções francesa e russa e por subjugar a África oriental à colonização. 

Qualquer sociedade dependente do gado - ou de familiares, como o zebu africano, os búfalos de água asiáticos ou os iaques dos Himalaias - era vulnerável.

A longa mas pouco conhecida campanha para conquistar a peste bovina é um tributo ao conhecimento e à bravura dos veterinários de "grandes animais", que combateram a doença em áreas remotas e por vezes devastadas pela guerra - através de faixas de território de África maiores que a Europa, no deserto da Arábia e nas estepes da Mongólia.

"O papel dos veterinários na proteção da sociedade está subvalorizado", afirma Juan Lubroth, chefe dos veterinários da FAO, o organismo das Nações Unidas para a agricultura, cuja sede, em Roma, foi palco da cerimónia de anúncio oficial na terça-feira. "Fazemos mais do que matar mosquitos, dar banho em mascotes e vacinar o Bóbi."

A vitória prova também que a conquista da varíola não foi apenas um acaso feliz e irrepetível, um momento histórico na medicina que nunca mais será visto. Desde que a varíola foi erradicada, em 1980, várias outras doenças - como a poliomielite, a dracuncolose (ou verme da Guiné), a cegueira dos rios (ou doença de Robles), a elefantíase, o sarampo e a deficiência de iodo - têm frustrado esforços intensivos e dispendiosos para seguirem o mesmo fim. A erradicação da peste bovina mostra o que pode ser feito quando os responsáveis no terreno combinam os avanços científicos com novas táticas.

Em 1998, um dos líderes de tais esforços, Gordon R. Scott, do Center for Tropical Veterinary Medicine da Universidade de Edimburgo, escreveu um artigo onde admitia, com relutância, o fracasso.

"O maior obstáculo", escreveu, "é a falta de humanidade do homem com o homem. A peste bovina prospera entre conflitos armados e massas de refugiados em fuga. Até que a paz mundial seja assegurada, o não ganha a discussão." Scott não esteve presente em Roma para a cerimônia; morreu em 2004. No entanto, e talvez sem o perceber, sobreviveu de fato à peste bovina. O último caso conhecido foi o de um búfalo selvagem analisado no Parque Nacional de Mount Meru, no Quénia, em 2001 (13).

A campanha moderna para a erradicação começou em 1945, ano de fundação da FAO (11), mas só se tornou exequível quando as vacinas avançaram. A versão de 1893, feita da bílis de animais convalescentes, foi substituída por vacinas criadas em cabras e coelhos (8) e, finalmente, em linhas de células em laboratório; uma versão estável com o calor foi desenvolvida nos anos 80.

Durante quanto tempo esta batalha antiga foi travada é uma incerteza. Embora as epidemias mortais no gado tenham afetado todos os acontecimentos históricos acima mencionados, não há certezas sobre as causadas pela peste bovina e as causadas por outras coisas, como o antraz.

A morte por peste bovina é rápida e dolorosa. Os animais ficam com febre, pingam dos olhos e do nariz. O trato digestivo fica inflamado da boca até ao ânus, e morrem de diarreia e de perda de proteínas. Porém, outras doenças têm sintomas semelhantes e um teste de diagnóstico rápido (12) que pudesse ser usado num animal moribundo só foi desenvolvido nos anos 90.

Até há pouco tempo assumia-se que a doença existia pelo menos desde 10 000 a. C., quando o gado foi domesticado no vale do Indo, onde é hoje o Paquistão. A peste bovina foi culpada de uma epidemia no Egipto em 3000 a. C. (a quinta praga de Moisés caiu sobre as manadas dos faraós) e pelas epidemias frequentes que levaram a fome ao Império Romano, quando este, no século iv, enfrentou as invasões dos bárbaros. No século ix foi o principal suspeito pela "mortalidade dos animais em manada" nas Ilhas Britânicas.

Contudo, o ano passado, os geneticistas japoneses que estudavam os padrões de mutação da peste bovina estimaram que, até ao ano 1000 da nossa era, a peste bovina era quase igual ao sarampo - tornando provável que as pandemias que matavam apenas animais naquela altura tivessem outras causas, como o antraz ou, possivelmente, um vírus ancestral a partir do qual evoluíram quer o sarampo quer a peste bovina.

Alguns especialistas acreditam agora que a doença surgiu no boi cinzento das estepes da Ásia Central e se espalhou através das caravanas de bagagens e animais que seguiram os exércitos mongóis no século xiii (3) à medida que iam conquistando a Eurásia, da China à Polônia.

Com a exceção de um surto breve e restrito no Brasil em 1920 (9), a doença não chegou às Américas, tendo alcançado a Austrália em 1923 (10). Porém, as autoridades detiveram-na matando 3 mil animais.

Apesar da proximidade com a Eurásia, a África foi poupada até 1887 (7), quando o exército italiano, que tentava conquistar a Abissínia (Etiópia), importou gado indiano para alimentar os seus soldados.

A partir do porto de Massawa, situado na atual Eritreia, o vírus expandiu-se tão rapidamente que chegou à África do Sul no espaço de uma década (e é considerado um dos fatores que empobreceu os rancheiros boer antes da guerra com os ingleses). A peste bovina condenou os pastores nômades da África oriental, que subsistiam à base de leite misturado com sangue de vaca. Os historiadores acreditam que um terço ou mais morreram de fome.

A doença continuou a saltar barreiras de água até aos anos 80, quando os soldados indianos do corpo de paz estacionado no Sri Lanka importaram cabras doentes. Até 1999, o Sri Lanka, devastado pela guerra, foi uma das últimas bolsas de peste bovina do mundo.

Enquanto a peste bovina avançava e recuava ao longo dos séculos, foram feitas algumas importantes descobertas científicas.

Em 1713, quando ameaçou as manadas papais, o Papa Clemente XI (4) pediu ao seu médico pessoal, Giovanni Maria Lancisi, que a detivesse. Lancisi estava familiarizado com o trabalho de Bernardino Ramazzini, um estudioso da Universidade de Pádua que deduziu, com exatidão, que a peste bovina se espalhava através do "bafo envenenado de um boi" e pelas suas secreções e pele - não através de nevoeiros, razões astrológicas ou outras teorias populares. Segundo Scott, Lancisi receitou medidas de quarentena que foram quase tão brutais para os seres humanos como para os animais.

As "curas" de charlatães foram proibidas; foi ordenado aos padres que deixassem de depender apenas da oração e que pregassem do púlpito que todas as manadas com animais doentes seriam abatidas e enterradas com cal, enquanto as manadas saudáveis seriam isoladas. Qualquer leigo que resistisse ou desobedecesse seria enforcado, arrastado pelas ruas e esquartejado. Qualquer padre que desobedecesse seria condenado às galés para toda a vida.

No espaço de nove meses, o surto nos estados papais foi erradicado. No resto da Europa - onde os protestantes desdenharam as ordens do Papa - persistiu durante mais um século e matou 200 milhões de animais.

Na década de 1750, os leiteiros de Inglaterra e dos Países Baixos experimentaram uma forma rudimentar de inoculação: ensopavam um pano no muco de uma vaca morta (5), cosendo-o depois numa vaca saudável. Nem sempre protegia os animais e por vezes causava a sua morte (isto aconteceu 50 anos antes de Edward Jenner ficar famoso por prevenir a varíola ao inocular um rapaz com pus extraído de uma vaca infectada - apesar de Jenner não ter sido o primeiro; o crédito foi seu porque repetiu 23 vezes a vacinação com êxito e publicou os resultados).

Em 1761 foi fundada em Lyon, França, a primeira escola de Medicina Veterinária (6), com o objectivo específico de combater a peste bovina.

Em 1924, um surto novo e devastador serviu de ímpeto à criação da OIE (Organização Mundial de Saúde Animal), equivalente veterinário da Organização Mundial de Saúde. Nessa década, a nova União Soviética concretizou por fim o velho objetivo czarista de erradicar a peste bovina no gado das estepes.

Sob o regime de Mao, a China seguiu as pisadas nos anos 50, confiando na quarentena e no abate, tal como Lancisi (com a excepção de os criadores que não cooperassem serem apenas presos).

A Índia, no entanto, lutou até 1995. "Não se pode matar vacas na Índia", lembra William P. Taylor, especialista em peste bovina e conselheiro técnico daquele país.

por Donald G. Mc Neil Jr., Publicado em 30 de Junho de 2011
http://www.nytimes.com

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