Desobediência civil e debilidade democrática: o exame do Cremesp em 2012



Por Heleno R Corrêa Filho




Nos anos da ditadura militar brasileira (1964-1985) o movimento médico Renovação teve seu berço na categoria profissional dos médicos de várias cidades brasileiras, inicialmente em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Brasília, Salvador e Porto Alegre.




A chama democrática da rebelião civil se espalhou entre os médicos com a eleição de chapas de Conselheiros nos Conselhos Regionais de Medicina de vários estados (CRMs), culminando por modificar a política do Conselho Federal de Medicina (CFM), com igual movimento das Associações Médicas filiadas à Associação Médica Brasileira (AMB) e também do movimento médico sindical representado pela Federação Nacional dos Médicos (FENAME).




Entre os anos 1970 e 1990, foi comum o enlace desse compromisso entre a cultura e a difusão científica com o movimento sindical médico e a defesa de condições éticas e legais para o exercício profissional chegando a influir sobre posições do CFM. Nasceu nessa época como polo cultural e político o movimento médico estudantil integrado à União Nacional dos Estudantes (UNE) que saía da clandestinidade, resultando na criação dos Encontros Nacionais de Estudantes de Medicina (ENEM), e logo a seguir na Associação Nacional de Médicos Residentes (ANMR).




A repressão política contra estudantes e médicos dissidentes no período da ditadura encontrou resistência velada e algumas vezes obstinada dos três domínios do movimento social médico. Vários militantes políticos estudantes e médicos foram salvos da prisão, tortura e eventual morte por ‘desaparecimento’ pela presença decidida dos Conselheiros dos CRMs acompanhando os “depoimentos” que órgãos de repressão policial e política impunham. Em muitas universidades vários estudantes e médicos residentes confiaram e foram igualmente resgatados da repressão política policial pelos seus professores. 




Como nem tudo são flores na vida, os hospitais públicos e universitários tinham em sua direção uma casta de professores e profissionais que apoiaram a ditadura e exerciam papel de repressão científica, política e cultural interna, além de reprimir o ingresso de estudantes e profissionais com currículo político de oposição à ditadura.




A inscrição no CREMESP em 1975 e a busca de exames de Residência Médica em Ribeirão Preto (USP), Campinas (UNICAMP), e São Paulo (FMUSP) exigia um “atestado de ideologia e idoneidade moral”, onde professores relatavam que o “doutor >>>> não professa ideologias alienígenas de luta de classes nem advoga a guerra psicológica subversiva nada havendo que o desabone”. Os chefes de residência médica recebiam orientação de espiões e policiais internos e externos para saber quem eles estavam admitindo para formação de especialistas.




Exemplo disso foi uma carta lacrada “de recomendação” escrita por professor de Brasília para ser apresentada à seleção para residência médica de vários hospitais-escola do Estado de São Paulo. Ela continha uma “mensagem cifrada “O estudante >>> executou suas obrigações adequadamente. Espero que continue a fazê-lo.” Ao ser apresentada por um candidato em entrevista ao chefe da residência da USP, após sua aprovação em exame escrito, este rasgou o envelope, leu e devolveu a carta, obviamente que o resultado foi a exclusão sumária e garantida do pretendente à vaga, como esperado.




Anos depois, em 1979, uma “amável” cartinha enviada pelo Delegado Romeu Tuma Júnior intimava médicos sanitaristas a prestar depoimento no DOPS Paulista por terem participado de greve de servidores públicos do Estado de SP, na gestão do governador “biônico” Paulo Maluf. A sensação de que se podia desaparecer no portal que se abria para a 4ª dimensão diminuiu com o acompanhamento presencial e destemido do Presidente e da Vice-Presidente do CREMESP – os Doutores Gabriel Wolff Oselka e Irene Abramovich. Com eles estavam os advogados José Carlos Dias e Luiz Eduardo Greenhalgh. Devemos a eles ter visto novamente a família depois de entrarmos no corredor da morte ao lado da estação de trem que hoje virou palco da Orquestra de São Paulo - OSESP.




A Assembleia Nacional Constituinte que debateu, escreveu, votou e promulgou a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 foi largamente influída pelo avanço intelectual e político do movimento médico daquelas duas décadas. 




O resumo dessa ópera é que em tempos de ditadura até a Polícia Administrativa do estado, como são os CRMs e CFM, exerceram papel protetor da cidadania e dos profissionais médicos. Em tempos de democracia debilitada nem sempre é assim. Voemos para 2012.




O movimento médico cultural, político e científico sofreu uma guinada à direita com a democratização no final da década de noventa. Em 2006 houve o início do movimento político do “cansaço paulista”. A liderança da corporação médica passou a responder mais intensamente aos desejos da prática liberal ignorando a proletarização dos médicos e o desrespeito a seus direitos trabalhistas. Nos últimos anos vem exercendo a tática de uma martelada no cravo e outra na ferradura fria. Ora defende interesses profissionais liberais igualando médicos às seguradoras e planos privados, ora se mobiliza em favor do SUS e dos profissionais médicos trabalhadores, assalariados e precarizados. 




A última fase da mobilização da corporação médica caracteriza-se por ser, contra as escolas médicas públicas, contra o Conselho Nacional de Saúde (CNS), contra a política nacional de avaliação do Ensino Médico, contra a valorização do trabalho no Programa de Saúde da Família (PSF) para os exames de residência médica, com propostas de medidas de repressão a partos domiciliares e acompanhamento de outros profissionais e contra o estabelecimento de regras acadêmicas claras e justas para validar diplomas de médicos formados no estrangeiro. Isto desemboca na defesa de um exame de ordem, imposto inicialmente aos formados que desejam praticar a medicina no Estado de São Paulo. (CREMESP, 2012a)




Esse nome deriva do fracassado modelo de exame da Ordem dos Advogados do Brasil, onde a maioria é reprovada, sem que alguém fiscalize e feche escolas sem qualidade. Abrem-se novas escolas em qualquer esquina, bastando, depois excluir os recém-graduados em uma prova aplicada por seus CONCORRENTES de MERCADO. Quem passa obtém o título de profissional. Quem não passa fica com o diploma de bacharel graduado sem poder exercer a profissão. Os empresários do ensino universitário privado cartelizado ganham nas duas pontas. Ganham criando cursos de graduação incompetentes e ganham ministrando cursinhos para as provas e exames de ordem.




Tramita no Congresso Nacional do Brasil uma proposta para que tal exame seja transformado em lei, também para os médicos. Enquanto a lei não manda, o exame é imposto como rito de passagem no estado de SP, com outros CRMs esperando ansiosamente a vez, prelibando fazer o mesmo assim que seja aprovada. 




Discute-se aqui que órgãos corporativos de Polícia Administrativa do Estado são compostos por Conselheiros, na função de fiscais do exercício profissional em nome da administração pública. Ganham salários do poder público ficando temporariamente afastados de suas posições profissionais, embora preservando seus direitos previdenciários e empregatícios. Ressalte-se que os Conselhos Profissionais não são órgãos de formação acadêmica nem têm estatuto de avaliação científica, cuja atribuição é das instituições acadêmicas, faculdades, escolas e universidades.




Os membros dos Conselhos Profissionais são eleitos por plataformas políticas apoiadas pelos seus pares profissionais já inscritos. Portanto, se passam a assumir a tarefa de reprovar os novos profissionais ingressantes trabalham essencialmente em conflito de interesse. A lógica diz que não verão vantagens em permitir o ingresso de novos profissionais no mercado, uma vez que estes irão aumentar a concorrência, abaixar o valor dos honorários e diminuir a resistência à compressão dos salários. 




Mesmo sendo eleitos pelos pares eles não o são por suas qualidades científicas, titulação acadêmica, postura filosófica e produção didática e pedagógica. São eleitos para mandatos de duração finita e não tem compromisso com a manutenção da qualidade acadêmica de seus colegas de profissão, que não são seus alunos, não exercem a profissão como discípulos, nem compartilham os objetivos das políticas científicas e culturais nacionais e estaduais. Esse mecanismo é o que macula de maneira indelével o exame de ordem da OAB dando origem à já observada repulsa pela implantação de seu irmão siamês, entre os médicos.




Defendendo o exame de ordem aparecem as associações de especialidades profissionais médicas, que compõem a AMB, cujos fins são científicos, culturais e acadêmicos. Elas flutuam no meio caminho entre as polícias administrativas, as academias e os sindicatos e dependo do momento e composição histórica favorecem a corporação liberal, ou os trabalhadores assalariados, ou se limitam aos exames para títulos de especialistas, porém, em nenhuma circunstância são submetidas programaticamente a órgãos de controle externo de usuários, população e governos. 




Em decorrência dessa ausência de democracia representativa ou direta, às Associações Médicas somente podem ser atribuídas funções corporativas, portanto, não podem receber delegação isolada para exercício de função própria do estado de avaliar e selecionar novos profissionais. Credenciar especialistas, educar continuamente e referendar a qualificação técnica do exercício profissional é diferente de autorizar o exercício profissional. Essa última função pertence no estado democrático à polícia administrativa dos CRMs.




Portanto, a Polícia Administrativa e a formação acadêmica qualificada são produzidas em diferentes corpos do aparelho de estado e não devem ser mescladas para que não haja prejuízo de suas atribuições. A independência de poderes ainda é o fundamento de nossa débil democracia sujeita a flutuações hondurenhas e paraguaias. Como a lei não permite que médicos graduados sejam impedidos de exercer a profissão foi exarada pelo CREMESP uma resolução por meio de edital de convocação para a prova sem obrigação de desempenho mínimo nas notas. Bastaria comparecer e responder. Não é isso que está acontecendo. (CREMESP, 2012b)




Os médicos recém-graduados que se organizaram para boicotar a avaliação imposta pelo CREMESP foram inicialmente retaliados quando tentaram obter suas carteiras profissionais de médico, colocando em risco seu exercício profissional em novas residências médicas, novos empregos públicos, novos empregos privados e mesmo suas carreiras acadêmicas. Receberam cartas dizendo que as provas ficaram retidas e “estão sendo analisadas” lentamente, com o gosto e o prazo impostos pelo avaliador. Conselheiros do CREMESP ameaçam “off the record” que no próximo ano quem cometer a mesma ousadia não receberá a carteira profissional. (CREMESP, 2012b)




Diante da recusa política organizada por médicos recém-graduados em cursos de boa qualidade a se submeterem ao exame obrigatório de conhecimentos por provinha de perguntas de múltipla escolha, o CREMESP resolveu aplicar as cláusulas de um edital de exame como se fossem resultantes de resolução para executar uma lei por meio de norma de polícia administrativa. 




Passou a obrigar os novos profissionais a esperar indefinidamente por uma avaliação “acerca das inconsistências inicialmente detectadas” nas respostas das provas, com a implicação de que “havendo qualquer decisão desfavorável ao resultado da sua prova, será garantido o pleno direito de recurso”. Dessa forma, os diretores do CREMESP prenderam os freios da lei entre seus dentes e dispararam em direção ao arbítrio, violando as normas da execução do direito administrativo e da “obrigação de fazer” dos funcionários públicos.




A cartinha lembra delicadamente o tom das cartas de antigamente, dizendo que se o médico interessado no documento tiver algo a reclamar contra qualquer “decisão desfavorável” que o faça posteriormente por recurso. Óbvio que fará isso sem poder exercer a profissão, com prejuízo profissional, monetário, moral, e político. A medida é até mais draconiana que as impostas na época dos delegados Sérgio Paranhos Fleury e Tuma, que não controlavam o CREMESP. (AZEVEDO JÚNIOR e LUNA FILHO, 2012)




O Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo - CREMESP resolveu atuar como órgão repressor contra o comportamento político dos médicos formados em 2012 que resolveram aplicar a letra “B” de boicote como respostas às perguntas de múltipla escolha do exame que pretende ser ensaio prévio do Exame de Ordem. Boa parte da recusa em prestar esse tipo de exame focaliza a discussão sobre a má qualidade acadêmica das provas quando deveria considerar que se trata fundamentalmente da usurpação autoritária e mercadista da função de outros órgãos de estado.




Referâncias: 

AZEVEDO JÚNIOR, R.; LUNA FILHO, B. Carta 0874/2012-Srp - Resposta oficial a médico que pede informação sobre demora na emissão de carteira profissional CREMESP em 2012. São Paulo - SP: CREMESP _ Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, 2012. Unpublished Work.




CREMESP. Exame do Cremesp: Resolução nº 239 torna obrigatória a avaliação para o registro profissional. Noticias, 2012a. Disponível em:Acesso em: 25/Julho/2012.


http://www.cebes.org.br/default.asp

Tags

Postar um comentário

0 Comentários
* Por favor, não faça spam aqui. Todos os comentários são revisados ​​pelo administrador.