A Religião e a Morte na Perspectiva Lucreciana



“A Religião e a Morte na Perspectiva Lucreciana”

Fátima Rocha Luiz Vianna




O desenvolvimento pessoal de Titus Lucrécius Carus, que viveu em Roma na primeira metade do século I a.C., é marcado por acontecimentos sociais e políticos significativos, que teriam abalado sua “crença num governo divino no mundo” . Lucrécio foi “testemunha de todos os sintomas que anunciavam o próximo desabar da ordem estabelecida.” Viver numa época conturbada, semelhante ao tempo de Epicuro, é fator de identificação com o filósofo e motivação tanto para adotar o epicurismo, como para escrever sua obra. No Livro I do De rerum natura Lucrécio se refere à ‘época terrível para a pátria’, quando era difícil escrever sua obra com a serenidade necessária . Abraçar a doutrina epicurista significa assumir a missão de levar ao povo romano a certeza de poder dirigir o seu próprio destino, de livrá-lo do medo dos deuses e da morte, de libertá-lo para a vida, de possibilitar-lhe a tranqüilidade da alma e desvendar-lhe as verdadeiras causas dos fenômenos que o atemorizam.

O vazio formalismo da religião romana, repleta de augúrios e de presságios, onde mais importante é a maneira como são feitos os rituais, do que as atitudes e condutas morais do crente , suscita a crítica acirrada de Lucrécio, sendo o De rerum natura dedicado à argumentação contra a religião tradicional. Acusa a religião de impelir os homens ao crime e a atos de impiedade, principalmente quanto a execução de sacrifícios humanos; aponta as atrocidades que os homens são capazes de cometer contra a natureza, em nome do temor dos deuses ; e corrobora o aspecto ameaçador da religião romana, que leva as pessoas a afastarem-se da verdadeira filosofia .

Na inscrição de Enoanda, o Tetraphármakon é composto por ingredientes das ‘Doutrinas Principais’ de Epicuro: ‘Não há nada o que temer quanto aos deuses. Não há nada a temer quanto à morte. Pode-se alcançar a felicidade. Pode-se suportar a dor.’ A ação dessa ‘medicina filosófica’, mantida à disposição de todos, sem limitações sociais, econômicas ou étnicas, abre o espaço do exercício e da docência filosóficos a escravos, mulheres e estrangeiros, sobre bases estritamente humanistas e não religiosas, evidenciando a dupla natureza da proposta epicurista: aliar razão iluminadora e amor à humanidade, numa lúcida compreensão dos fenômenos naturais e da procura da felicidade terrena, da ciência e da ética. 

Lucrécio dá ênfase à física epicurista, da qual decorrem importantes conclusões práticas sobre a indiferença dos deuses e a mortalidade da alma. O princípio fundamental é a eternidade do átomo: toda matéria pode ser decomposta em átomos e é efêmera. Também o homem é efêmero, mortal, porque é composto de átomos. No entanto, os átomos, como são sólidos e indivisíveis, são eternos e, com a desintegração da matéria, apenas separam-se para fundir-se em outros corpos. A morte é, então, a desagregação do conjunto atômico e, por isso, não há por que temê-la. A física de Epicuro disserta também sobre a gênese e a destruição da natureza, com o fim de libertar o homem das três preocupações que são obstáculos à felicidade terrena: o medo do destino, da morte e dos deuses. Seu objetivo é tornar o homem senhor do seu destino, livrá-lo do medo a fim de libertá-lo para a vida, possibilitar-lhe a tranqüilidade da alma, desvendar-lhes as verdadeiras causas dos fenômenos que o atemorizam. O conceito de clinamen introduz o arbítrio num jogo de forças mecânico, rompendo a necessidade para acolher a contingência e a existência da vontade livre. Fundamenta a espontaneidade da alma, a autonomia da vontade e a liberdade humana. Explica a possibilidade do homem reorientar sua vida interior, desviando-se de sensações dolorosas para ir ao encontro do prazer. A liberdade  para ser feliz mesmo na adversidade  subentende o desvio, a recusa da fatalidade. A física epicurista explica também os mecanismos humanos, justificando as premissas de sua ética, cuja meta é dissipar a angústia mental que a ignorância da natureza e dos deuses pode produzir e representa um esforço para libertar a alma humana dos equívocos e das crenças aterrorizadoras infundadas. Apresentada por Lucrécio no Livro II do De rerum natura , a ética aponta para o prazer sereno como o bem supremo, sustenta-se no conhecimento verdadeiro, na ciência da natureza. 

O ponto de partida da filosofia epicurista de Lucrécio, é a verificação da infelicidade humana  todo homem quer ser feliz, mas constrói sobre bases falsas a sua felicidade e sofre. O De rerum natura é concebido como um poema épico para chamar o homem à razão; é um poema contra o medo, que desvenda toda a verdade sobre a natureza, com o objetivo de permitir ao romano o gozo da ataraxia e mostrar-lhe que não precisa temer a morte, não precisa temer os Deuses, nem tampouco o Aqueronte; os fenômenos que atribui aos Deuses resultam de causas naturais e é preciso que se afaste da ignorância pela compreensão da natureza. A doutrina de Epicuro é transformada por Lucrécio em pensamento romano, sendo o De rerum natura uma expressão crítica da vida romana de seus dias. Com uma explicação materialista do universo, a filosofia epicurista veiculada por Lucrécio apresenta um novo conceito de divindade e de suas relações com o homem romano, tendo sido grata a uma geração que se agitava no furor das paixões políticas, das guerras civis e da luta pelo poder. O tumulto e a ansiedade provocadas pelas condições sociais e morais de sua época, são descritas no poema de Lucrécio, onde observa-se seu espírito combativo que o faz lutar pela salvação de seus concidadãos. 

Na abertura do poema, Lucrécio louva e exalta Vênus, o que é uma prova de que ele não pode ser classificado como ateu, pois não nega a existência dos deuses; antes os considera os representantes das forças da natureza, os ‘nomes poéticos’ das forças naturais . Apresentando a natureza como princípio e fim de tudo o que existe, inclusive dos deuses, Lucrécio tira destes o poder da criação e o entrega à natureza, colocando de lado as superstições favorecidas pela religião . Para Lucrécio o homem, quando libertado do determinismo e do temor dos deuses, torna-se livre para estabelecer suas próprias normas de conduta. E para que alcance a paz de espírito duradoura e a tranqüilidade deve dedicar-se ao estudo da natureza, pois através dele o homem liberta sua mente do temor religioso e das superstições. É pelo conhecimento da natureza do universo que atinge a ataraxia, o estado de completa felicidade. Lucrécio atribui grande importância ao livre arbítrio, à liberdade do ser humano, negando o determinismo da força dos desígnios do destino, ou da vontade divina  o ser humano é guiado pela força de sua vontade e de suas decisões. Nenhuma vontade divina pode se sobrepor à vontade humana e os deuses não podem dirigir os atos humanos individuais. Por não poderem ser tocados pela mão humana, também não nos podem tocar . Os deuses não se misturam aos humanos, nem mesmo para lhes arrebatar a alma; estão totalmente distantes da vida humana, nela não se envolvem; não se sensibilizam com os sofrimentos dos homens, nem com os seus pedidos. Também não os atingem as orações e os sacrifícios dos rituais religiosos, que são, portanto, completamente inúteis, pois não alcançam seu objetivo .

Os deuses de Lucrécio não são os senhores ásperos que os míseros mortais imaginam e aos quais atribuem onipotência; são eternos e bem-aventurados, não interferindo na natureza nem no governo do mundo; passam seu tempo na paz contemplativa, alheios à criação, à vida e à destruição dos mundos. Os deuses existem, mas são seres perfeitos que não se misturam às vicissitudes da vida humana; vivem em perfeita serenidade nos espaços que separam os mundos  os intermundia; sua perfeição suprema constitui o ideal a que aspira o sábio e devem ser objeto de culto desinteressado; não teria sentido adorá-los de maneira servil, temerosa e interesseira, pois eles desconhecem o mundo imperfeito dos homens e de modo algum atuam sobre ele. Lucrécio descarta a participação dos deuses na criação do Universo, apresentando a vida como guiada por si mesma, além de negar a possibilidade de tudo ter sido criado por um poder benevolente, para uso, gozo e conforto da humanidade . Além de não terem razão nenhuma para criarem o mundo com a intenção de que fossem adorados ou para que os homens lhes fossem gratos, porque são perfeitos e de nada necessitam, não haveria motivo para que interrompessem seu eterno repouso. E só poderiam tê-lo feito diante de um modelo; não havendo modelo de homens nem de mundo, os deuses não os poderiam ter criado. Além disso, a idéia de uma criação divina do mundo e dos homens é incompatível com a existência do mal e de tantos defeitos  deuses perfeitos não criariam um mundo e homens imperfeitos . Da mesma forma como nada fizeram para que ele surgisse, também nada podem fazer para impedir-lhe a destruição, pois as leis naturais e espontâneas são as únicas responsáveis por tudo o que ocorre no Universo. Segundo Lucrécio, somente pelo estudo da filosofia de Epicuro o homem fica livre de todos os terrores impostos pela religião e pelas superstições para viver uma vida semelhante à dos deuses, felizes e bem-aventurados. A filosofia epicurista representa uma libertação e uma oportunidade de ver as coisas e os fenômenos de forma clara e sem dúvidas, como obra da natureza e não da vontade divina . O homem atribui a causas divinas aquilo que não sabe explicar de outro modo; e dessa ignorância também nasce o temor dos deuses . Lucrécio preocupa-se em apontar as leis naturais dos fenômenos que são habitualmente atribuídos à influência dos deuses ou a fatos miraculosos ; seu objetivo é fazer com que os homens percebam que a origem das coisas independe da intervenção dos deuses .

“[Tito] Lívio diz “........” sobre Numa, o organizador da religião romana: ‘A melhor maneira de controlar um povo ignorante e simples é enchê-lo de medo dos deuses.” Assim fazia a religião tradicional romana que, dominada pelos dirigentes políticos, nos momentos decisivos utilizavam as armas religiosas para manter a população sob o seu controle. Lucrécio pretende, com seus versos luminosos, trazer o alento e a possibilidade de libertação do povo romano em relação à opressão exercida pela religião do Estado . Para Lucrécio, aqueles que acreditam no poder terrível dos deuses e se mantêm atrelados à religião, sentem-se perturbados pelo raciocínio revelador de sua filosofia, que provoca uma revisão nas crenças mais arraigadas da religião romana. Os que adotam a filosofia epicurista conseguem compreender as leis da natureza, pelas quais todas as coisas acontecem, assim como os seus alcances e limites.

A morte é apresentada por Lucrécio como o problema essencial a ser enfrentado pelo ser humano, origem de suas dores e do avanço do poder da religião. O medo da morte é a maior das apreensões do indivíduo ao longo de sua existência; ele é promovido e mantido pela religião, como forma de controle social. Por medo da morte o romano não pode sentir prazer em viver, pois viver é sempre estar atormentado com a expectativa de terminar no Aqueronte. E o indivíduo passa seus dias tentando evitar esse destino cruel, buscando evitar a morte; e sentindo que é vã a sua tentativa de ludibriar a morte, sofre e se desespera, sem vivenciar o prazer que a vida pode lhe oferecer. A fantasia de poder, de algum modo, interromper o processo de vida e morte é alimentada pela religião romana, através da inclusão de novos deuses em seu panteão, de novos rituais, de novos sacrifícios. No entanto, não há por que temê-la, se ela não é mais que a dissolução do aglomerado de átomos que constitui o corpo e a alma e, portanto, não existe enquanto o homem vive e este não existe mais quando ela sobrevem. 

Lucrécio questiona as crenças religiosas a respeito da natureza da alma e apresenta sua localização e características. Devido às premissas materialistas da doutrina epicurista, atribui à alma uma natureza material e corpórea ; estando dispersa por todo o corpo. A alma também tem uma natureza mortal - nasce, cresce, envelhece e perece juntamente com o corpo, sofrendo também das mesmas doenças e dores. Além disso, não só o corpo não é capaz de viver sem alma, mas também a alma não sobrevive fora do corpo humano - ou estão juntos ou não estão. Corpo e alma fazem parte de uma unidade inseparável - em se destruindo uma das partes a outra também perece; ambos obedecem aos mesmos princípios vitais; e a alma nem mesmo poderia ter vida própria, pois não tem sensibilidade. Segundo Lucrécio, se a alma não se desfizesse juntamente com o corpo, ao receber uma alma ao nascer, o indivíduo deveria ser capaz de se recordar dos acontecimentos e das experiências vividas - o que não acontece, pois não existe lembrança de qualquer vida anterior. Além disso, se a alma passasse de um corpo a outro e se alojasse nele vinda de fora, traria consigo toda a sabedoria da vida anterior e, portanto, uma criança que recebesse a alma de um adulto deveria, por força, ter já os seus conhecimentos. Além disso, seria impossível e inadmissível tentar-se misturar o mortal com o imortal .

Lucrécio apresenta o princípio fundamental da transformação da matéria - que é posteriormente formulado por Lavoisier. Procura demonstrar que a morte não é o fim dos corpos e das coisas, mas uma transformação do estado dos mesmos, transformação que os faz retornar a sua origem, ou à sua essência, seus elementos, ao que eram no momento de sua criação. De acordo com as leis naturais, tudo o que existe está, inexoravelmente, destinado a perecer, pelo menos pela ação da passagem do tempo. Lucrécio demonstra a sucessão entre o nascimento e a morte de tudo o que existe na natureza, a circularidade na relação entre vida e morte - vida que leva à morte, morte que permite uma nova vida; não há vida sem morte, não há morte sem vida. No entanto, os elementos da matéria, os átomos, são indestrutíveis e seu aniquilamento impediria a possibilidade de renovação da vida - nada desaparece por completo, restando sempre uma essência que se transmuta em outro .

Segundo Lucrécio, já está marcado um fim certo para a morte de cada coisa e sua transformação é necessária para que a vida se renove; isso ocorre num espaço de tempo pré-determinado pela natureza de cada coisa em particular. A vida de cada coisa tem um limite de tempo exato e a morte é somente o fim de um ciclo. Tudo aquilo que ultrapassa os limites impostos por sua própria natureza, morre, necessariamente . Essa explicação de Lucrécio sobre o destino após a morte é necessária e decisiva para que o romano alcance a felicidade da vida. “Porque, se os homens vissem diante de si fim certo de seus males, teriam a força de resistir às superstições e às ameaças dos sacerdotes; sentem-se impotentes porque julgam que têm de sofrer depois da morte castigos eternos.” 

Esta é a idéia de morte como possibilidade de renovação natural da matéria e das espécies, a alternância entre vida e morte, que fazem parte do mesmo processo, indefinidamente, um sempre indo terminar no outro; e o que precede sempre dá origem ao que vem depois. Assim, tudo retorna às suas origens. A morte não faz desaparecer os elementos da matéria; somente os dispersa, ocasionada por uma desconexão na cadeia dos elementos, que novamente estariam prontos para serem reagrupados formando outra matéria, com nova cor, forma e sensibilidade.

Para Lucrécio o medo da morte é, também, responsável pela corrida desenfreada do ser humano para o acúmulo de bens, honrarias e poder. Para suplantar esse medo, o indivíduo não respeita limites, nem os seus próprios. Além disso, acende a inveja entre eles e impede o desenvolvimento da amizade, da boa-vontade e da virtude; pode levar à traição e à exacerbação dos temores e das fantasias infantis. O homem passa a temer, não os perigos reais e concretos, mas o que é imaginário e irreal.

Então, nada devemos temer da morte, porque com a perda da unidade corpo e alma e pela interrupção da memória, após sua ocorrência, perdemos também a consciência do que nos aconteceu no passado e nada mais poderá nos afetar ou angustiar, porque não há lembrança alguma dos sofrimentos pelos quais se passou. O temor da morte é, então, completamente desnecessário, pois a morte é a libertação dos males da vida, já que nenhum mal nos pode alcançar. Por isso é igualmente desnecessária a preocupação com o que sucederá ao corpo depois de morto: deve ser indiferente que o enterrem, o queimem, ou o deixem como pasto de feras e de aves de rapina.

No De rerum natura o homem é um ser da natureza e, como tal, a ela deve submeter-se, admitindo com a mesma tranqüilidade o nascer e o morrer. O problema é que, mesmo não estando satisfeito com a vida, o homem não aceita a morte; quer viver, na esperança de melhores dias, e enfrenta sofrimentos causados pelo medo, pelo amor, pela ambição; não se lembra de que a morte é o fim do sofrer e do lutar, que a morte é ausência de sensação, de dor, de angústia. Lucrécio afirma que nada na morte deve ser temido pelo homem, pois não pode ser infeliz quem não existe e, depois que a morte lhe arrebata a vida, estar morto é o mesmo que não haver nascido. Não existem os castigos infernais e, em vez de temer o Aqueronte, o romano precisa combater seus medos, suas paixões e suas ambições, pois vive atormentado pelo desejo de poder, pelo desejo de ter, e luta como se fosse viver eternamente, numa ânsia irracional, como se o seu poder fosse capaz de ultrapassar a sua vida. Mas, ao mesmo tempo, Lucrécio demonstra que cada um é germe e criatura, pois pela morte participa da renovação dos seres e das coisas. E, se o homem tem de morrer, por que rebelar-se contra o que natural e inevitável? É que o medo da morte provém do desconhecimento do que realmente acontece no mundo, na natureza das coisas e dos homens. Lucrécio acredita que, com sua obra, está ajudando os seus contemporâneos a superar seus medos e angústias, negando a existência de um reino desolado de sombras e abalando os fundamentos da temerosa crença que ameaça o defunto com os terrores de uma noite eterna e de impiedosas torturas. Rejeitando a idéia de vida após a morte liberta a mente humana dos temores que são fruto das superstições alimentados pela religião.

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