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Como Luvas de Pelica - Agatângelo Vasconcelos


Naquele outono de 1889 o céu de Baltimore estava ainda mais cinzento e a temperatura parecia estar abaixo do que se esperava para aquela época do ano. 


O Dr. William Halsted, renomado cirurgião do Hospital John Hopkins acabara de sair do seu trabalho onde concluira as cirurgias do dia retirando um tumor mandibular que deformava a face de um rico comerciante local. Preferira dispensar o tílburi habitual pois desejava caminhar pelas ruas da cidade para dissipar as nuvens do seu espírito. Estava angustiado e parecera-lhe melhor não regressar muito cedo à solidão de sua residência. Hábil profissional, atualizado em seus conhecimentos, vivia intensamente um período de franca expansão da Medicina, especialmente da cirurgia. Com o advento da anestesia, e pouco depois o da anti-sepsia, a dor e a infecção, implacáveis adversários do ser humano passaram a ser combatidos eficazmente. Estes notáveis avanços na luta contra o sofrimento e a morte, propiciaram aos cirurgiões a possibilidade de operar mais lentamente, ainda que isso prolongasse o tempo cirúrgico. Principalmente agora existiam satisfatórias expectativas de que não surgiria uma terrível e quase sempre fatal febre infecciosa. Os admiráveis trabalhos de Pasteur, Koch, Semmelweiss e particularmente os de Lister, aos poucos afastaram dos centros cirúrgicos os agentes microbianos que no pós-operatório levavam ao óbito com grande freqüência. Para tanto, médicos e auxiliares, alem de borrifarem o campo operatório com uma solução de ácido fênico, antes do ato cirúrgico lavavam copiosamente as mãos com substâncias como o sublimado corrosivo e fenol. Muito ainda a anestesiologia e a anti-sepsia teriam que ser aprimoradas mas graças a elas as cirurgias já eram suportáveis e confiáveis. Os médicos agora ousavam intervir nas cavidades orgânicas tais como o tórax, o abdomem, o útero e mesmo nas articulações, assim como realizar toques ginecológicos e partos sem que o formidável inimigo logo surgisse, invalidando tudo o que houvesse sido feito em beneficio do paciente.
Como Luvas de Pelica
Como Luvas de Pelica


Mas o Dr. Halsted, criador das incisões que levam o seu nome, destinadas a ablações mamárias menos mutiladoras e mais terapêuticas, conceituado e respeitado por seus concidadãos e por seus pares do mundo cientifico, era naquela ocasião um homem entristecido. Trabalhara com a sua habitual competência e tudo correra bem. Contudo sentira a falta, durante todo o dia, da enfermeira Caroline Hampton, sua instrumentadora e chefe da enfermagem cirúrgica. É que, paradoxalmente, a anti-sepsia que tantos benefícios trouxera, causara aquela sentida ausência: a loura e bela Senhorita Hampton desenvolvera uma dolorosa afecção dermatológica ao contato com as substâncias irritantes indispensáveis à higiene das mãos. O próprio Dr. Halsted examinara a auxiliar constatando, contrafeito, a extensão da moléstia. Caroline apresentava as mãos avermelhadas, edemaciadas, e com pontos eczematosos interdigitais. Seria-lhe impossível continuar no centro cirúrgico e isso significava ser deslocada para outro setor hospitalar onde não precisasse manusear os anti-sépticos.

Acabrunhado o cirurgião caminhava pela alameda ao lado do rio que corta Baltimore, preso a pensamentos melancólicos seus passos eram pesados e a sua marcha vagarosa. Resolve dirigir-se ao centro da cidade pretendendo adquirir fumo e café para enfrentar a longa noite que se aproximava. Ao passar próximo à Companhia de Borrachas Goodyear, subitamente uma idéia lhe ilumina, talvez capaz de resolver seu problema. Como não pensara naquilo antes? E com passos vigorosos dirige-se apresados à indústria onde procura o proprietário dizendo-lhe:

– Goodyear, preciso que confeccione luvas de látex, resistentes o suficiente para que suportem ao trabalho com os meus instrumentos cirúrgicos, mas não tão espessas que tirem a sensibilidade táctil. Não podem ser grossas, nem mal feitas como luvas de jardinagem. Procure dar-lhes um aspecto agradável e que sejam cômodas ao uso prolongado num mesmo dia.

Dias depois o empresário entrega ao médico a encomenda solicitada, sem nada lhe cobrar pois ainda era um produto experimental. O Dr. Halsted convoca a enfermeira ao seu gabinete e expõe o seu plano. Ela voltaria à sala cirúrgica, porém usando aquelas luvas e após uma semana seria avaliada por um dermatologista, que daria a palavra final quanto a sua permanência ou não no centro cirúrgico. A moça hesitou. Temia que lhe voltassem os incômodos sintomas que enfeiaram as suas mãos, agora saradas. Contudo foi convencida por Halsted com facilidade, mesmo por que não era seu desejo afastar-se definitivamente de um trabalho que muito lhe agradava e para o qual tinha qualidades apreciadas por todos.

Quando a Senhorita Hampton usou as luvas pela primeira vez, muitos ficaram surpresos e alguns até mesmo contestaram. A enfermeira, porém, sentiu-se confortável durante o trabalho e acima de tudo alegrou-se ao retirar as luvas e observar não haver qualquer vermelhidão, como acontecia anteriormente. Por sua vez o Dr. Halsted constatou que a instrumentadora nada perdera quanto à sensibilidade ou a destreza dos seus movimentos. Notou também, encantado, que as mãos de Caroline pareciam mais elegantes, como se usasse luvas de pelica em fina ocasião social... Estavam, assim, criadas as luvas cirúrgicas em breve adotadas por todos os hospitais do mundo. E o trabalho cotidiano, lado a lado, levou ao surgimento de um clima amoroso entre o cirurgião e a enfermeira. Caroline correspondeu plenamente, pois era a consolidação de uma afinidade que já existia. Por outro lado, o Dr. Halsted passou a ser visto jovialmente assoviando canções românticas. E mais ainda, começou a compor poemas de amor e a cantarolá-los não sei em que melodia. Eram composições sentidas que pareciam vindas do futuro. Coisas assim:

– Oh Carol, I am but a fool
Darling I love you
Though you treat me cruel
You hurt me, and you make me cry!

Havia o cirurgião perdido toda a prudência, como o leão da fábula... Ainda pretendeu criar uma associação de médicos literatos, poetas e escritores, entretanto era uma idéia muito avançada para sua época, não vingou. Mas havia inventado e instituído o uso das luvas nas salas de cirurgias. William Halsted e Caroline Hampton casaram-se em 1890, mantiveram um venturoso romance e foram felizes para sempre.
|Agatângelo Vasconcelos  É médico e escritor

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