Tânia Maria é agora menina santa Enquanto o povo chora a morte de uma inocente, autoridades pedem a reforma do Código Penal |
O Cruzeiro - 30 de julho de 1960.
DIZEM que a memória do povo é fraca, mas o caso do assassino da menina Tânia Maria, pelo Frankenstein de saias, Neide Maia Lopes, duvido que o povo esqueça. O local onde a garotinha foi morta, um terreno baldio junto ao matadouro da Penha (Rio de Janeiro), está convertido num pequeno santuário, onde, diàriamente, milhares de pessoas fazem preces, levam flôres, acendem velas e pedem graças. O pequeno pedaço de chão onde a criança morreu queimada, após levar tiro na cabeça, foi cercado por barras de ferro, imitando um pequeno berço, por um popular anônimo. No dia seguinte à morte de Tânia, já se erguia no local uma cruz branca, e, desde então, a peregrinação não cessou. Começa de manhã e vai até altas horas da noite. Senhoras, moradoras nas imediações, contam que cêrca de 1.000 pessoas por dia, muitas vindas de longe ou em trânsito pelas rodovias Rio-São Paulo e Rio-Petrópolis, vão até o local onde morreu a “Flor do Campo”. Êste é o nome que poetas desconhecidos deram à pobre menina. À cruz estão pregados poemas de louvor e glorificação à pequena vítima. Êsses poemas falam: “Ó Santa menina - O mundo não era teu - Tu fôste predestinada - Para a glória do céu”. Também foi pregado à cruzinha branca o “Hino à Flor do Campo”, com estrofes assim: “Ó menina imaculada - Ó meu anjo salvador - Aqui, aqui te louvamos - Com a nossa imensa dor”. Continua: “Vamos todos para o campo - Lá morreu a nossa flor - Aqui, aqui te ofertamos - Todo nosso grande amor”. E o Hino termina: “Êste campo consagrado - É da filha do Senhor - Aqui, aqui nós rezamos - Ó meu anjo salvador”. Em volta do pequeno carneiro improvisado, oram, ajoelhadas, mulheres idosas, mocinhas e crianças, como se estivessem ante um altar. Velhas mães, não contendo sua indignação, dizem que a Polícia deveria deixar a mulher-fera nas mãos do povo. Quando a Polícia divulgou que iria fazer a reconstituição do crime, dezenas de mulheres ficaram de prontidão no local, esperando a chegada de Neide para liquidá-la. E muitas têm esperança de poderem ainda fazer justiça com as próprias mãos se a reconstituição vier a ser realizada. As próprias detentas de Penitenciária de Mulheres de Bangu, revoltadas, ameaçaram trucidar Neide. Elas que cometeram crimes de tôda espécie, acham que a perversidade da assassina de Tânia foi além dos limites. Enquanto a revolta da opinião pública não arrefece, volta-se a discutir a questão da pena de morte. Nesta reportagem, os leitores terão o ponto de vista de várias pessoas autorizadas no assunto. Da soma dessas opiniões, conclui-se uma coisa; com pena de morte ou prisão perpétua, ou sem uma coisa ou outra, o que urge é reformar o Código Penal, para que, através de castigos mais rigorosos, mais intimidativos, ponha-se um paradeiro à seqüência de crimes tão bárbaros.
O PROFESSOR Jurandir Manfredini, docente de Psiquiatra da Faculdade de Medicina, ex-diretor do Serviço Nacional de Doenças Mentais, diz: -“Em princípio, sou contra a pena de morte, com exceção de alguns casos, nos quais sou francamente favorável a essa punição. Por exemplo, todos os crimes contra crianças, como ataque, estupro, sevícia, ou morte cruel - caso da mulher-monstro da Penha - só podem ser punidos com a execução sumária do criminoso. Do mesmo modo, os crimes contra velhos indefesos devem merecer a mesma pena. Nestes aspectos, acho que o Código Penal brasileiro é deficiente e muito benévolo, o que tem permitido, pela impunidade, o aumento progressivo de crimes dessa natureza. Devemos acentuar que os países mais civilizados da atualidade adotam a pena de morte para certos casos de crimes perversos, e até mesmo para crimes que, aqui, seriam considerados leves. Considero que não haveria, em absoluto, regresso social ou cultural se o Brasil também adotasse a medida. O que, desgraçadamente, vai acontecer com Neide é que, protegida pela benevolência da nossa Lei e a intervenção da dialética dos advogados, essa criminosa acabará tendo uma pena leve, se não fôr até absolvida - o que não é de surpreender em face dos nossos costumes judiciários onde a impunidade é a regra comum”.
DISCUTE-SE se a mulher-monstro é demente ou normal. O Delegado Olavo Campos Pinto, do 24.º Distrito Policial, onde Neide confessou o crime, afirma que a bêsta-humana manteve, durante o tempo em que ali permaneceu, o comportamento de todo criminoso sabido e manhoso, que esconde o crime, inventa histórias, dá pistas falsas, nega a autoria, e o pouco que confessa é o que não pode ser mais negado. - “Assim procedeu Neide”, diz o Delegado Olavo Campos Pinto. -“Ela negou, negaciou, protestou inocência até o momento em que lhe mostramos o revólver e a bala com que varara o crânio de Tânia Maria”. Dissemos-lhe que, se o revólver era dela, fôra ela quem matara a criança. Neide, espavorida, perguntou: -“E por que havia de ser eu?”Explicamos-lhe que um revólver tem raias dentro do cano; que a bala, quando é expelida, sai girando e que o projetil apresenta as marcas das raias do cano. Ela examinou o cano do revólver, viu que de fato tinha estrias. Mostramos-lhe a bala e ela viu que de fato havia os arranhões das estrias. Mostramos-lhe o laudo dos peritos criminais, que em poucas horas ficara pronto. Neide, então, se transfigurou, sentindo que a máscara de inocência, de que se munira, acabava de cair. Sua resistência à confissão arrefecera. Ela hesitou algumas horas mais a contar como praticara o crime. De repente, teve uma crise de chôro, e confessou tudo. Era o desabafo. Com minha experiência de velho policial, digo que ela se comportou no Distrito como uma criatura perfeitamente normal e consciente. Tanto que, após confessar em cartório, eu lhe disse: -“Agora só falta você pagar pelo que fêz”. Ela respondeu: -“Eu mereço”.
O DR. Cordeiro Guerra, ex-promotor do 1.º Tribunal do Júri que marcou sua passagem por aquela tribuna, atuando em alguns casos que fizeram época nos anais forenses e exerce atualmente a função de assistente do Procurador-Geral da Justiça da Guanabara, fêz as seguintes declarações: -“A admitir-se a responsabilidade penal da acusada, Neide Maia Lopes, a pena aplicável deverá ser imposta em sua plenitude, com o maior rigor. Dificilmente se encontrará uma personalidade tão insensível, perversa, uma intensidade de dolo tão grande, uma capacidade de dissimulação tão excepcional - tudo em ação contra uma criança indefesa. Considerando as circunstâncias do crime, pode-se dizer que a êle se aplicam numerosos agravantes previstos no Código Penal. É preciso que o tempo não apague da mente popular o horror do crime, e que, depois, não tenhamos o paradoxo freqüente de ver o criminoso objeto de simpatia ou piedade. Fatos como êste e como outros que ainda recentemente abalaram a opinião pública, estão a indicar que já se aproxima a hora da revisão dos Códigos Penal e de Processo Penal, no Brasil. O homicídio qualificado por motivo torpe, praticado contra criança, com requintes de perversidade, dificilmente escaparia à pena capital nas legislações dos povos mais cultos”.
PRONUNCIANDO-SE contra a pena de morte, mas pedindo a pena mais severa possível, o Promotor Everaldo Moreira Lima que acaba de reassumir suas funções no 1.º Tribunal do Júri, assim se expressou: -“A pena de morte é anacrônica e sua adoção como meio de punir o crime é anti-histórica. A pena de morte, que é contemporânea das civilizações mais elementares, vem paulatinamente desaparecendo das legislações, e mesmo nos países que a prescrevem é restrita sua aplicação. A proceder o argumento do maior efeito intimadativo, teríamos de retornar ao sistema das penas aflitivas e infamantes, como a lapidação, a impalação, o chicote, a golilha e o pelourinho e a ninguém de bom-senso pode ocorrer tal idéia. No caso brasileiro, penso que precisamos reformar nosso Processo Penal, e dotar a Polícia e a Justiça de elementos pessoais e materiais em número suficiente para a boa consecução de sua tarefa, criando novas Varas para dar andamento rápido aos processos. Atualmente, os julgamentos são retardados, a distância leva a uma decisão que não consulta os interêsses da sociedade. Para mim, o julgamento imediato dos crimes é mais importante que o rigor da pena. Quanto ao crime de Neide Maia Lopes, que traumatizou a opinião pública brasileira, na hipótese de ser ela responsável e de mente sã, estará configurado o homicídio qualificado por motivo torpe e emprêgo de meio cruel, com a agravante de ter sido praticado contra criança. Está sujeita à condenação de 12 a 30 anos, e o juiz deverá aplicar a pena máxima. Acrescentando-se a pena de 2 a 8 anos, pelo seqüestro, essa criminosa bárbara poderá pegar 38 anos de prisão. O dispositivo de que o réu condenado a mais de 20 anos tem direito a novo júri deve ser extinto do Código Penal".
OPINIÃO das mais abalizadas é a do Desembargador Romão Côrtes de Lacerda, não só pela função que exerce como pela larga experiência que possui no manuseio de processos criminais de tôda espécie. Diz êle: - “As penas eliminatórias - pena de morte ouprisão perpétua - são adotadas na luta contra a criminalidade pela maioria dos povos mais cultos. Tenta-se contestar a eficácia de tais penas com o recurso às estatísticas, sempre equívocas. É inútil, como diz Tarde, argumentar com isso quando são as próprias associações de criminosos (“gangs”), que, nos seus códigos draconianos, reconhecem essa eficácia, cominando a pena de morte a torto e a direito aos seus parceiros. (Lembrem-se os pactos da“Maffia”). São ainda os delinqüentes que reconhecem a fôrça intimidativa da pena de morte, praticando assaltos sem armas, onde até os policiais trabalham desarmados”. Na exposição de motivos do Código de 1930. Rocco apresentou o melhor exame possível dos argumentos pró e contra a pena capital, então adotada e substituída, com a República, pela prisão perpétua. Lembrando o caso da Suíça, salientou que a história da pena de morte é uma seqüência de supressões e restaurações. Beccaria a justifica como “justa e necessária quando se julga que a morte de um indivíduo se impõe ao bem público. Santo Tomás de Aquino a aceitava. Rocca reputa-a necessária para os crimes mais graves, aquêles que profundamente comovem a opinião pública e põem em perigo a paz social. Se põe têrmo aos crimes mais graves, é certo que também os diminui, donde a resistência dos países que a adotam em aboli-la. Nos crimes mais atrozes, abre-se ao legislador, conforme observou Tarde, um dilema: ou fazer morrer sem fazer sofrer, ou fazer sofrer sem fazer morrer. E, dificilmente, se concluirá que a última solução é mais justa e humana que a primeira. Dizer que a pena de morte não põe têrmo ao crime é aconselhar a abolição de tôdas as leis penais, porque também elas não porão têrmo à criminalidade. Por outro lado, argumentar pela abolição da pena de morte, com a possibilidade dos erros judiciários, é como justificar a abolição da Medicina, com os erros dos médicos, que causam mortes com mais freqüência que os erros dos juízes. Ademais, os erros da Justiça são muitíssimo mais difíceis, só se aplicando a pena capital quando provado fora de dúvida o crime. No Brasil, pràticamente, a pena, nos delitos mais graves, não passa de 15 anos, graças à facilidade legal do livramento condicional, que reduz à metade as penas detentivas ou a 2 terços na reincidência. É claro que essa fraqueza influi, decisivamente, para a exacerbação da criminalidade no País, onde os mais temíveis delinqüentes voltam sempre à circulação para de novo delinqüir, como é notório entre nós. Os piores homicidas, na verdade, são condenados a 12, 20, 24 anos e raramente a 30. Graças ao livramento condicional, voltam ao convívio social após cumprirem a metade ou 2 terços dessas penas... Não é de admirar, pois, que haja mais homicídios no Rio de Janeiro que em tôda a Inglaterra. É que, naquele país, o criminoso não escapa: ou é condenado à morte ou à prisão perpétua; se louco, é internado por tôda a vida. A enérgica repressão penal é ainda o meio mais eficaz para a defesa social contra o crime, sendo de notar que os Códigos Penais mais severos do Mundo são precisamente os das nações mais cultas, que adotam sempre penas eliminatórias - morte ouprisão perpétua - para crimes como êste, que está causando grande comoção na opinião pública brasileira”.
Fonte;Site memoria viva
Fonte;Site memoria viva